Uma afirmação de Kleber Lucas durante entrevista ao Caetano Veloso no canal da Mídia Ninja no Youtube tem gerado burburinhos na comunidade evangélica. A polêmica gira em torno do tradicional hino “Alvo Mais Que a Neve ou (em alguns hinários) “Bendito Seja o Cordeiro”, o qual Kleber disse ter conotação racista. “Branco como a neve, branco com a neve. Porque o sangue de Jesus me torna branco. As ideias de embranquecimento estão lá no hino’, observou ele.
É fato que não existem documentos afirmando que o metodista Éden Reeder Latta fez a composição com uma mensagem subliminar, fazendo referência à purificação do pecado e ao mesmo tempo o embranquecimento de corpos pretos escravizados. Pelo teor, existe a suposição de que a letra seja baseada em algumas passagens bíblicas, incluindo Salmos 51.7, Apocalipse 5:13, I João 1:9. Mas nada está confirmado.
A primeira publicação de The Blood of tue Lamb (O Sangue do Cordeiro) foi na coletânea “Sacred Songs and Solos (Cânticos e Solos Sacros), de 1881 (organizado por Ira D. Sankey), com arranjos de Henry Southwick Perkins. Em 1914, ela ganhou uma adaptação do hinista Henry Maxwell Wright. Essa é uma das versões que chegou ao Brasil, provavelmente traduzida porSalomão Luiz Ginsburg, que a publicou em 1891 na versão introdutória do Cantor Cristão, hinário oficial das Igrejas Batistas do Brasil.
Quase que um hit “gospel sacro”, a música está inclusa em hinários de diferentes denominações cristãs: Salmos e Hinos (SH), Harpa Cristã Ampliada (HCA), Hinário Adventista (HA), Hinário Evangélico (HE), Hinário para o Culto Cristão (HCC) e Hinário das Igrejas Evangélicas Reformadas do Brasil (IERB).
Essa ligação com a questão racial, levantada durante o programa que também tinha a presença de Leonardo Gonçalves, trouxe à luz não só essa mas também uma série de “louvores” cantados a plenos pulmões e cheios de emoção, que foram escritos por escravistas. Como não se tem dados sobre o real conceito de “Bendito Seja”, e poucas informações relacionadas ao autor, é difícil afirmar que tenha na sua base algo que remeta ao eugenismo. Porém, pela época que foi escrita, e levando em consideração que a grande maioria dos cristãos (mesmo do norte) se beneficiavam do trabalho escravo, mantendo o negro como uma simples mercadoria, não podemos desconsiderar o direcionamento apresentado por Kleber Lucas.
O maior problema foi ele levar sua visão para um público de fora da igreja evangélica e não fazer uma contextualização histórica, podendo usar a defesa do seu mestrado que resultou no livro “O canto forasteiro, o hinário batista Cantor Cristão e questões de racialidades no Brasil do século XIX e X”. Isso deu artifícios para que fosse atacado pelos evangélicos conservadores, radicais e racistas; e a igreja ser considerada racista por (supostamente) cantar músicas racistas.
Por outro lado, vale ressaltar que a grande maioria dos autores de hinos clássicos eram homens brancos ingleses e/ou estadunidenses. Então, inevitavelmente o histórico de muitos deles não condizem com o que compunham. Este é o caso de John Newton, um comerciante de escravos britânico do século XVIII, que depois de enfrentar uma tempestade no mar teve sua experiência divina. Tornou-se pastor e escreveu centenas de hinos. O mais conhecido deles é o impactante “Amazing Grace” (também presente na “Sacred Songs and Solos”).
O Newton não é o único — Isaac Watts entra na lista. Muitos pastores, evangelistas, músicos e missionários usaram a música e a bíblia para converter escravizados ao cristianismo dos brancos e cometer crimes ao redor do mundo em nome de Deus. Em 2004, o Rev. Stephen Lowe, bispo da igreja anglicana em Manchester, na Inglaterra, pediu para que retirassem o hino “I Vow To Thee, My Country” dos serviços religiosos porque sua letra proclamava o patriotismo inglês, esquecendo de todas as atrocidades causadas pela coroa britânica.
Um tema tão delicado como este — e vários outros — deve ser tratado com cuidado para contribuir que “crentes” e “não crentes” se juntem para desqualificar o racismo existente dentro das igrejas, que precisa cada vez mais combatido, ao mesmo tempo que colocam nelas o peso de ser disseminadora de preconceitos — o que não é verdade absoluta.
Aos cristãos que dizem não existir racismo nas instituições evangélicas brasileiras, fica um verso de “Racist Christians”, do Dee-1: “Uh, racist Christians, I’ve been searching for you / I’ve been wondering where you live and what kind of church you go to /Do you pledge allegiance to Christ and not to the enemy? [“Racistas Cristãos, eu estive procurando por você / Tenho me perguntado onde mora e que tipo de igreja você frequenta/ Você jura fidelidade a Cristo e não ao inimigo?”]